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Velhozes

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Os pobres confeccionam nos com abóbora porqueira. O dado, contudo, é abóbora menina que, tal moça virgem, é mais doce, mais corada, mais tenrinha. Aceitada a diferença, mistura-se, numa tigela, para ficar de lado, um tanto de água morna, um cubo de fermento de padeiro e uma colher de sopa de farinha triga. Coração aos pulos, aguarda-se que cresça. Aqui, após a cozedura, esmaga-se a abóbora com a meiguice dos dedos entusiasmados. Acrescenta-se, neste santiámen, a farinha que ficou de reserva na tigela, sumo de duas laranjas, um cálice de aguardente, uma colher de chá de bicarbonato e o sal necessário. Tende-se com força até a massa se encher de bolhas de ar. Em sinal de feitiço, o ritual das mãos desenha sobre ela uma cruz, por via do mau olhado. Espera-se que engorde e olha-se quanto engordou. Tapa-se, agora, o alguidar, com o sobejo de velha manta lobeira para que o calor se conserve durante doze horas. Terminado o descanso, fritam-se, com anseio, colheradas sobre colheradas desta massa numa frigideira com o azeite a escaldar. Medram antes de se transformarem em pequenas bolas enfoladas. Por último, já em pires, pratos ou travessas, empoam-se a prazer com açúcar e canela. Intensifica-se o cheiro místico a Natal. Um foguete, deitado à porta da rua, anuncia o termo do frígido. Esperam-se as doze badaladas graves do relógio da torre, horas a que o Menino nasceu, e, agora sim, toalha branca sobre a mesa, comem-se com natural apetite acompanhados de café de cevada bem quente e os homens, ainda, de meio copo farto de abafado.

Sendo uma necessidade, comer deverá ser também uma alegria sempre que na porção devida: nem de menos nem de mais no acto religioso de cada refeição. A culinária é, em si, a história, ou melhor, a arte da cozinha que, na relação homem/meio, a criatividade e a individualização, as economias e as circunstâncias souberam (puderam) em conjunto originar. A de Azinhaga, freguesia rural, dizem, mais rica do Pais, é magra em peixe e fraca em carne. O latifúndio terá algo a ver com isto? Se tem, despertou nas pessoas, pela negativa, o instinto de, nos passadios, usarem com engenho os produtos da terra; o azeite, a cebola, o alho, o louro, a hortelã, os coentros, a salsa, e, para empanturrar, o pão, as batatas, o arroz, o grão, os feijões, os tomates e as couves. No decorrer das crises, ervas, sobretudo ervas, cardos e crucíferas, pasto ruim que nem o gado quer. Deixam-nas, por isso, à ganância avidíssima dos ranchos. Na lezíria e nos olivais, nada na procura procuram para a sua fome: primeiro os filhos, logo os maridos e depois, só depois, elas, se houver restos. Vida de meninos anjos inocentes, escravas de homens rudes desarrimados descobriram, ou adaptaram para eles uma cozinha impar no trato especial da confecção Disto, ficou gravado na memória das gentes foi que, pelo ritual secreto da liturgia, as mulheres, as mães, se transcenderam: no sacrifício, no amor, na inventiva. E, do tempo esquecido, que desta, com de tantas outras coisas pequenas, a lembrança dos mortos volte à presença dos vivos.

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